Guido Fernando Mondin
Nem sabia da existência deste livro, apesar dos esforços que venho fazendo para conhecer e ler tudo que existe sobre o IV Distrito. “Burgo sem água (reminiscências sobre o IV Distrito)” é do Guido Mondin, senador. Seu pai dá nome a uma rua nesta região.
Foi numa garimpagem num sebo que me deparei com esta edição meio desbotada, porém com uma dedicatória belíssima de uma personalidade local a outra não menos importante.
Mondin, além de ter sido senador, foi artista plástico. Há um quadro magnífico dele no antigo prédio do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul.
Neste livro vamos encontrar vários desenhos seus para ilustrar os relatos. São 50, versando sobre a vida cotidiana do IV Distrito, indo de sua formação até os anos 80, pois estamos diante de uma edição de 1987, pela Flepam, com 188 páginas, escrito quando ele já morava em Brasília.
“O velho burgo desfigurou-se, presa fatal da evolução ou do progresso, como quiserem”, nos diz de forma saudosista na Introdução, refletindo seu espírito conservador, alheio ao tema do modernismo, desta incessante luta entre Fausto e Mefisto.
Aí residem alguns “senões” de suas reminiscências; porém, não deixam de ser magníficos, com enquadramentos históricos, mesmo não tendo sido este seu objetivo, já que faz questão de dizer que são reminiscências!
O aprendizado que se faz de sua leitura deve servir para continuarmos a lutar pela revitalização do IV Distrito.
Senti falta de reflexão sobre a arquitetura local, coisa que Mondin poderia ter explorado por seu espírito de artista.
Ele nos chama a atenção de outros que escreveram sobre o IV Distrito: Aquiles Porto Alegre, Rafael Clark, Arquimedes Fortini e Ary Veiga Sanhudo.
Seu livro é um roteiro pra entender a evolução da região, transformações, costumes, o cotidiano e até sua “desfiguração” - “presa fatal da evolução ou do progresso, como quiserem”, nas suas palavras.
Lembra-nos da pujança econômica, do aeroporto, as fábricas Bier, Renner, Gerdau, Neugebauer, entre outas.
Ele também nos remete às chácaras, plantações e especialmente aos muitos tambos de leite, das péssimas condições das ruelas, da precariedade do saneamento básico, da falta de água – por isso – “burgo sem água”.
Neste caso, faz um relato da festança, da glória local, quando se abandonaram os poços poluídos, as bicas, os chafarizes, os pipeiros, especialmente a carregação de baldes de água, lavação de roupas no Guaíba, jorrando água nas torneiras por obra do prefeito Otávio Rocha, o mesmo que começou o Viaduto na Borges, que hoje guarda seu nome. Diga-se de passagem o primeiro prefeito a plantar árvores na cidade. Isso foi em 1926; logo, menos de um século atrás. Ano também do crime do bonde no Centro, quando foi assassinado o deputado Carlos Silveira Martins Leão.
Naqueles tempos, o futebol – “esporte bretão” como chamavam na época – já estava no sangue e na alma daquele povo com parcos entretenimentos, mas seus times não eram nem o Grêmio nem o Inter, mas o Municipal e o Concórdia.
A vida cultural e social nos é narrada pelo nascente cinema, pelo teatro amador muito forte, pelo que se depreende, as serenatas – que eram muitas – os festejos de rua, os bailes.
Ele nos dá uma ideia da precária imprensa do bairro, porém fica evidente a força dos clubes, como o Gondoleiros, o Polônia, o Círculo Operário, ponto de reuniões, festas e bailes.
“Foi o então prefeito Ildo Meneghetti que nos deu a notícia da construção da Ponte do Guaíba, numa das audiências públicas que concedia semanalmente na sede do Círculo Operário, por iniciativa da Associação de Amigos do IV Distrito. O bairro todo entrou em euforia,” relata emotivamente Guido Mondin, já um adolescente na época.
Retrato brilhante nos fornece para entender a importância da Ponte para ligar nossa capital ao sul do Estado, bem como para a região, na boca do bairro.
Apre(e)nde-se aqui a importância e peso da vida comunitária, a sempre lembrada Associação, a participação cidadã “audiências semanais com o prefeito”, o peso do renascente Círculo Operário.
Mondim nos dá lições sobre as profissões da época, das quais muitas já desapareceram, não tendo mais função: o serrador de lenha, o leiteiro, o pipeiro, os cabungueiros (aqueles que retiravam os cabungos das fétidas latrinas nas casas), as empalhadoras (de móveis), as lavadeiras, os peixeiros, os vendedores de todos os tipos de produtos que passavam de casa em casa com suas ofertas...
Traça um quadro das antigas vendas (de secos e molhados), ancestrais dos mercados, os “points” de encontro, como o Sport Café, o lugar do bucólico Carnaval, as primeiras greves operárias. Ele tinha cinco anos quando eclodiu a grande greve geral de 1917 aqui.
Não passa ao largo as rinhas de galo, a carrocinha para recolher cães, com direito a desenho de sua pena.
Lembra-nos da sempre importante Festa dos Navegantes, o papel dos credos religiosos, o seu papel na educação básica, como o Concórdia, o Santa Família, o São João Lassale e outros.
E vemos a luta pelo Cemitério Municipal São João, dando-nos conta do suplício dos enterros daquele “longínquo” bairro – para a época – levar seus mortos até a Azenha-Glória, lomba acima, pois os pobres carregavam seus defuntos em féretros sem fim ou iam de carroças.
São múltiplos e inúmeros os fatos narrados, mas isso basta para termos uma ideia da construção histórico-cultural do IV Distrito e seus moradores.
Guido Mondin colaborou com seus contemporâneos para sua fisionomia e nos deixa este legado de reminiscências para recompor parte significativa de sua História.
Cabe a nossa geração fazer sua parte, pensar, repensar o IV Distrito na perspectiva de sua revitalização, da manutenção de seu patrimônio histórico e cultural efetivo e não sucumbir diante de uma lista de prédios e edificações em qualquer explicação para preservação.
Não é desta maneira tola que vamos ficar na História como ficaram aqueles que o fizeram como se fica sabendo pela pena livre de Guido Mondin.
Espero que não decepcionemos as gerações futuras.
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