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Cronologia Comentada e Ilustrada

Século XVIII



1732 – Chegada dos primeiros povoadores da cidade, oriundos da Ilha da Madeira, dentre eles Jerônimo de Ornellas Menezes e Vasconcelos. Foi proprietário das terras onde a cidade teve seus primórdios: Centro, Caminho do Meio, Petrópolis, Bom Jesus, Passo da Areia, Navegantes, Independência, Monte Serrat. Vetígios da antiga sede da “Estância de Santana” podem ser vistos no morro de igual denominação, no “Passo do Dornelles”, onde hoje está o Observatório Astronômico da UFRGS. Em 05 de novembro de1740 Jerônimo de Ornellas recebeu carta de sesmaria do Rei de Portugal sobre essas terras, fato considerado como fundante da cidade e pelo qual se comemorou, inclusive, seu bicentenário em 1940*. Mais tarde, sempre envolta em controvérsias, a data da fundação foi oficializada no dia 26 de março de 1772.

*Este fato gerou um embate, porque a tese (equivocada) era do Professor Walter Spalding. A tese vencedora foi a do grupo em torno de Francisco Rioprardense Macedo, do qual temos registro em livro dos embates e polêmicas.


Os mistérios de Porto Alegre

Moacyr Scliar

Porto-alegrense de nascimento (figura rara; como em outras cidades brasileiras, a população de Porto Alegre é formada princi­palmente por gente vinda do interior) e um apaixonado pela capital gaúcha, sempre fiz dela temas de artigos e crônicas — além de cenário para ficção. Há alguns anos, a RBS pediu-me uma coletânea de meus textos sobre o tema. A organização não deu muito trabalho; a escolha do título, sim. Acabei optando por Os mistérios de Porto Alegre. No começo, nem sabia bem o porquê, mas ao longo dos anos fui concluindo que a escolha até podia ser fruto de uma súbita e bem-vinda intuição.

Porto Alegre é uma cidade misteriosa. Não no sentido gótico, sinistro, do termo. Os mistérios de Porto Alegre são, bem, mistérios porto-alegrenses: pequenos, encantadores, mistérios. São historinhas, são lugares, é o jeito de ser de uma cidade fundada por sessenta casais açorianos — quando? Bem, aí está o primeiro mistério. Durante décadas, discutiu-se o ano da fundação de Porto Alegre, Falava-se em 1744, falava-se em 1772. Essa última data acabou prevalecendo, acho que mais por exaustão do que por qualquer outro motivo.

Os açorianos inspiraram o primeiro nome da cidade, Porto dos Casais. Porto, porque a cidade fica às margens do Guaíba (outra discussão: o Guaíba é um rio? É um lago, formado pela confluência dos cinco rios que nele desembocam? E um estuário?). O rio condiciona muito a vida porto-alegrense. Pelo rio chegavam os pequenos navios, trazendo os imigrantes (esta é uma cidade de alemães, italianos, de eslavos) ou as frutas do vale do Taquari. O rio substitui o mar que está longe; e, finalmente, o rio é responsável pelo panorama que se avista dos numerosos morros sobre os quais se derrama a cidade, panorama que é particularmente bonito ao crepúsculo, quando o sol incendeia as águas e o céu — fazendo com que Mário Quintana escrevesse, extasiado: "Céus de Porto Alegre, como farei para levar-vos para o céu?".

A beleza misteriosa de Porto Alegre. Esta não é uma cidade que se desvenda de súbito ao visitante, que se revela numa pujante beleza natural, como o Rio ou Salvador. Porto Alegre a gente tem de descobrir aos poucos; é uma metrópole, sim, mas uma metrópole provinciana, tímida. Começa-se pelo centro, pela Rua da Praia, natu­ralmente. Depois caminha-se pela Praça da Alfândega e os estra­nhos, fascinantes prédios que a guarnecem. O art-noveau porto-alegrense foi obra de construtores alemães e resultou de um insólito sincretismo, uma combinação de elementos europeus e brasileiros. Aliás, essa combinação pode ser vista em outros lugares. Na Biblio­teca Pública, há esfinges e arabescos, símbolos positivistas e ferro trabalhado. No Parque Farroupilha, inaugurado em 1935 para co­memorar o centenário da Guerra dos Farrapos, há um templo japo­nês em miniatura, um pseudo vulcão, um minizôo. Essa mistura chega às raias do kitsch, mas fala muito de Porto Alegre. Como falam seus bairros: o Alto da Bronze, com seus casarões antigos; Moinhos de Vento, com suas residências aristocráticas; Petrópolis, o bairro da classe média; e o Bom Fim, onde nasci e me criei, e que era, em minha infância, uma aldeia judaica da Europa Oriental perdida, como uma espécie de Chinatown, no meio da cidade: as ruas cheias de gente, os vendedores ambulantes apregoando suas mercadorias, as gordas matronas falando mal da vida alheia ou correndo atrás de seus magros rebentos com um prato de comida.

E grande parte dos mistérios de Porto Alegre está no seu ima­ginário, nas histórias que fizeram o encanto da minha meninice, embora muitas delas façam parte deste inconsciente coletivo que parece ser comum a muitas cidades. Assim, por exemplo, a lenda do cabaré das normalistas. Diziam que as comportadas moças, saindo da escola onde estudavam, não iam para casa, mas seguiam para um misterioso cabaré onde mudavam de roupa e, muito maquiadas, entregavam-se por inteiro à sua lascívia. O endereço desse excitante estabelecimento era um segredo ao alcance apenas de uns poucos eleitos. Falava-se de um ou dois choferes de praça que, por muito dinheiro, conduziriam até lá os seus passageiros. Confesso que nem tentei, mesmo porque bordéis não faltavam à cidade; num estado povoado (ao menos no início de sua história) por homens que con­quistaram a terra aos espanhóis, havia falta de mulheres, uma neces­sidade suprida pelos cabarés e pelas casas de tolerância.

Descobrir os mistérios de Porto Alegre: eis a tarefa que me propus, desde a infância, e que não concluí — e nem vou concluir. Diferente de Teseu, e à semelhança de Walter Benjamin, gosto de me perder nos labirintos da memória e da fantasia, que, em minha imaginação, se confundem com as ruas de Porto Alegre. E, sem pressa de chegar, eu os percorro quase que diariamente. Guia-me não o fio de Ariadne que socorreu o herói grego, mas o fio da emoção, que nunca se desfaz.

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